O lorde da Acauã – Oswaldo Lamartine de Faria


O lorde da Acauã – Oswaldo Lamartine de Faria

O homem quieto deixou o copiá de sua fazenda por um motivo muito sério: ver de perto a “conspiração” que os amigos estavam lhe aprontando, Em alpendres d’Acauã – Conversa com Oswaldo Lamartine de Faria. Aqui, o escritor potiguar fala do que mais gosta, adiantando a prosa que estará no livro (Edições UFC).
Eleuda de Carvalho

Foi um ano ruim de água, aquele. De quatro pés só restaram tamboretes, porque Bernardo Cintura passou pelo sertão do Nordeste, como tinha feito tantas vezes antes e ainda faz, na companhia fatal da Moça Caetana. Mas ali, na fazenda de seu Juvenal, que seria deputado, senador e governador do Rio Grande do Norte, o trabuco roncou no alpendre e por todo canto se espalhou o cheiro bom da alfazema queimada, vinda lá de dentro da camarinha. Sinais de menino novo na casa. Oswaldo Lamartine de Faria nasceu naquele distante 15 de novembro, e se apresenta assim: “Sou sobejo da seca do 19″.

O menino caçula virou um garoto magro e bicudo, de ouvidos alertas, e um dia, rapaz novo, partiu do lar, para estudar agronomia nas Minas Gerais. Passou os aparreios da vida, gozou as maravilhas que a vida também distribui, ciosa. Casou, foi de muda para o Rio, teve filhos e os filhos, netos. Como o sol que a cada dia se levanta, o homem agora viúvo sacudiu as dores próprias e alheias, tomou outra vez o fardo às costas, voltou ao sertão natal. É na fazenda Acauã, entre bichos livres e fruteiras pejadas, que Oswaldo Lamartine remexe a saudade do que foi e se enternece com o que virá.

Entre tantos novembros próximos e distantes, Oswaldo Lamartine de Faria, magro e ossudo lorde do sertão do Seridó, continua a escrever cartas, a melhorar seus livros, a inventar outros, a marcar o tempo presente com o ferro bom do sertão que já passou. Da sua fazenda Acauã, município de Riachuelo, no vizinho estado potiguar, Oswaldo só sai se for por um motivo de força maior. E que força é maior do que o amor, digo e respondo, nenhuma. Pois, no outono fértil e florido de sua vida, Oswaldo encontrou nova paixão. Pois foi esta mulher, também escritora e da estirpe dos gênios (filha que é de Moreira Campos), quem tirou os fumos da viuvez do seu coração agreste.

Natércia Campos é a organizadora do novo livro de Oswaldo Lamartine de Faria, Em alpendres d’Acauã, que será publicado pelas edições UFC, e por isso ele está aqui, de visita à cidade. Mas do que ele gosta mesmo é do sertão, esse sertão velho de guerra. E disso ele entende. Que o diga Rachel de Queiroz, a respeito da ajuda de Oswaldo na criação do seu Memorial de Maria Moura: “Desenhava roupas, chapéus, cachimbos, e principalmente, as armas dos meus cabras”, disse. Além de relembrar à amiga o glossário sertanejo do século 17, “o nome de um pano, os trocos de moeda, os chás caseiros, as marcas de ferrar”. Que disso ele também é mestre sabedor. E sabe das abelhas e das aves e dos bichos que correm a caatinga de espinho e pedra desse sagrado chão. (Ah, e se você não sabe quem é Bernardo Cintura ou a Moça Caetana, pergunte ao Oswaldo ou leia os livros dele e os do mestre Ariano Suassuna. Mas adianto o serviço: Bernardo Cintura é o outro nome da fome. Da morte, é Moça Caetana).

O sertão do nunca-mais

“Não tive que reencontrar o sertão porque nunca me apartei dele. Morei 38 anos no Rio, mas todas as minhas férias eu vinha pro sertão. Tudo que eu lia – é exagero dizer tudo, né? – mas a maior parte do que eu lia era literatura sertaneja, do nordeste, viu? Eu chegava ao ponto de copiar determinadas expressões que eu tinha esquecido. É aquela saudade das palavras que chega, não sabe?, feito namorado que lê carta da namorada não sei quantas vezes. O sertão que eu conheci e que amei, esse não existe mais. Foi a terraplanagem cultural da eletricidade, da eletrônica, das estradas, dos meios de comunicação. Moro num pé de serra, sozinho, estou ali há quatro anos, ainda não ouvi um aboio. Não tem um vaqueiro encourado, no Seridó ainda tem, andei por lá e vi. O povo anda de bicicleta por todo canto. Você tem uma boa burra de sela, pra andar aonde? Só se for dentro da sua propriedade. Mas um animal de sela você só sabe se é bom depois que enfada, viagem de seis léguas pra cima. Você hoje anda dois, três quilômetros, é a divisa da propriedade, uma BR daquela, onde passam uns malucos a 100, 120 km. A tradição sertaneja acabou-se. A única tradição que ainda vejo, não falo nas festivas, que eu não entendo desse negócio, sou bicho do mato: é a vaquejada”.

Vaquejada, o que era

“As fazendas eram em divisas, não existia o arame, o gado era misturado. E, em determinada época do ano, se acertava pra fazer o ajuntamento desse gado em fazenda que tivesse melhor estrutura. Os vaqueiros levavam aquelas marombas de gado, para ali fazer a apartação. Vaqueiro dizia, ó, esse bezerro aqui é da vaca tal que é de seu fulano, tome ferro. E assim sucessivamente. O gado que ninguém sabia de quem era chamava-se o gado do vento, era o gado arrematado no evento. Depois de repartido e ferrado, os proprietários proporcionavam ao vaqueiro, que tinha uma luta muito pesada, uma vaquejada. Deixavam uns bois no curral e se corria a esse gado. O que era essa carreira? Dois vaqueiros se postavam no mourão da porteira, o cabra com a vara de ferrão dentro do curral botava uma rês pra fora e eles saíam atrás dela pra botar no chão. Quando derrubava, ganhava música, quando não, era vaia”.

Cavalinho piquira

“Quem era aquele cavalinho? Veja lá em Gustavo Barroso, que vocês cearenses estão devendo à gente uma edição que preste de Terra do Sol. Ninguém descreveu os bichos do Nordeste melhor do que ele. Pois bem, aquele cavalinho os mouros deixaram na Península, a Península trouxe pra cá no descobrimento, aqui ficou por aí, tangeram pro sertão. A natureza matou quem não prestava, quem não teve condições de sobreviver. E quem sobreviveu foi um piquirazinho, um animal desgracioso, sem muito porte, sem aprumo, às vezes defeituoso até, mas com um casco de ferro! Se você chegar com uma ferradura pra um sertanejo legítimo, se ele souber o que é, é porque ele não é mais sertanejo, daqueles que nasceram, cortaram o umbigo e ficaram por lá. No sertão, onde o cavalo e o boi pisavam em cima da pedra e do espinho, nunca se viu ferradura. Então, era esse cavalinho que o vaqueiro de manhã banhava, dava um litro de milho, botava a sela e ia tirar quando escurecer. E dava conta do recado. Cavalinho que nunca viu cenoura, ração balanceada, afago nenhum, nada disso”.

O Texas é aqui

“Esse cavalo quarto de milha, dos Estados Unidos, é um belo animal, a garupa uma beleza, mas só corre 400 metros. O nome já está dizendo, é pra resolver tudo em 400 metros, que é um quarto de milha. Animal de muita destreza, muito inteligente, mas esse animal não tem casco, tem que viver ferrado, é uma donzela. São tratados como uma amante, olhe, três cabras pra dar ração, tudo que é de vacina. Agora, na vaquejada, esses moços se vestem de texanos, é chapéu texano, é bota texana, é um cinto com uma fivela deste tamanho, tem toda uma história dentro daquele cinto. Pra criar coragem, eles bebem uísque, bebem cachaça mais não. Aí tem que derrubar num período xis, isso eles fazem direitinho. Mas é esse cavalo pra derrubar uns bichinhos desse tamanhinho que estão introduzindo no sertão, pra acabar com o nosso cavalim”.

Brasões sertanejos

“O ferro é uma beleza. Do lado direito da rês é o ferro do proprietário, que sobe da coxa pra pá, pela tauba do pescoço à testa. Do lado esquerdo era o ferro da ribeira, a bacia hidrográfica onde a sua fazenda estava assentada. Então, um boi seu, digamos que fosse aqui C, de cidade, saísse lá em Quixadá, digamos que fosse Q. Chegava lá, alguém olhava o ferro, não conheço essa marca, mas ribeira não é daqui, é da cidade. Chegando na cidade, o vaqueiro daqui olharia, dizia, eu não sei de quem é, mas o caixão da marca, quer dizer, o desenho básico, é da família tal. Mais fácil do que placa de automóvel, né? O criador autêntico, antigo, não tem letra. A letra já é do alfabetizado. Eles copiavam de um desenho rupestre, de um signo zodiacal, uma figura. Tinha aquele desenho do chefe da família, cada filho fazia a diferença num lugar. Aí vem a machonice, mulher não tinha direito de ter ferro. Ela recebia o ferro do pai com um número um, se fosse a mais velha, dois para a segunda e por aí vai, porque depois que ela casava, ficava com o ferro do marido. Se evita, na manufatura dos ferros, os ângulos, porque queima e vira uma ferida só. O animal bem ferrado tem que ser com o ferro bem quente e a mão não pode ser muito pesada nem muito leve. Depois passa um oleozinho queimado, descasca. Hoje em dia está tudo desaparecendo. Uma vez precisei de corda de cabelo, fui buscar no Seridó, aquilo não apodrece. É tirado do canudo do rabo da rês, a parte central. Eles tiram o pelo, lavam bem lavado, espalham num lajedo e depois então um vai fiando, o outro vai rodando. Não acaba nunca”.

Memorial de Maria Moura

“Acontece que Melchíades Pinto Paiva, que é meu amigo, me botou em contato com a Rachel, que estava escrevendo aquele livro. E havia alguns claros na lembrança dela, detalhes que ela não tem a obrigação de saber. De planta eu sabia porque estudei agronomia, sabia não, dei palpite, o Brasil é um país de palpiteiros. E as armas porque sempre gostei. Aí comecei a supri-la dessas coisas e ela se encantou com isso, mas ela sabia tudo aquilo, estava é esquecido dentro dos baús da memória”.

Adeus às armas

“Tive, não chegava a ser uma coleção, tive algumas armas. Ainda tenho uma garrucha de encher pela boca, de pederneira, que era armada com uma pedra de sílex, antes de se descobrir a espoleta. Arma branca tive também, ainda tenho uma pajeú de lembrança, grande. Algumas feitas até de mola de caminhão, cabo de embuá. Chamam cabo de embuá porque faziam uma rodela de alumínio, outra de chifre ou de couro e aquilo quando passava a lixa, dava o acabamento final, ficava preto e branco, preto e branco, feito um embuá. Agora, o grande artesanato de faca do Nordeste que eu conheci, que eu percebi, era dos irmãos Caroca, na Paraíba. Vocês, aqui no Juazeiro, tiveram também um bom artesanato, mas o de lá era melhor. Cabo de marfim e ouro, aquele marfim era tirado das bolas de bilhar velhas, e a lâmina de ponta de espada, daquelas espadas da Guarda Nacional do Império. No Caicó, eles faziam umas bainhas que era uma beleza. Eu ainda tenho uma. A faca que eles chamavam de ferreiro era feita inicialmente de restos de ferramentas agrícolas. Posteriormente, depois da penetração do automóvel no sertão, de feixes de mola. O acabamento era de acordo com as posses, porque tinha as de carregação e as de encomenda. A peixeira é relativamente nova. A peixeira, litorânea, entrou no sertão mais ou menos em 30, por aí, ainda alcancei um sertão que desconhecia a peixeira. A pajeú é uma faca mais larga e a lambedeira é quando o sujeito amola dos dois lados, lambida dos dois lados, né? Os criminosos enterravam num cururu, viu, aquele que tem umas glândulas venenosas. E deixavam ali durante muito tempo”.

Aves asiladas

“Eu tinha um grande amigo, Monsenhor Expedito, um homem santo assim feito o Padre Cícero. Chegava lá na casa dele, em Potengi, ele criava passarinho, eu dava uns esbregues nele, como pode um padre, carcereiro de passarim? Então peguei os passarinhos dele, levei lá pra casa, soltei tudim. Tinha uma danada, um galo de campina, que era mansinha, nascida e criada na gaiola, tirada de ninho. E ela ficou por ali, pelo alpendre, quando eu me sentava pra comer na mesa ela vinha, beliscava minha comida, bagunçava tudo. Um dia, o pessoal do Ibama veio aqui, eu já tinha botado tudo que era cerco pra eles soltarem os bichos lá. Eles chegaram, chamei pra almoçar, sentaram ali. Quando dá fé, chegou o galo de campina, começou a beliscar na comida. Aí eles se renderam e passaram a fazer solta de pássaros. Só não quero macaco, que é um bicho desgraçado de mal caráter, come os ovos dos passarinhos. Mas pode trazer até cascavel que eu acho bom. Eles ficam por ali, eu dou de comida, não tenho o que fazer, sou um velho desocupado”.

Acauã

“Minha filha, eu moro no meio dos matos, aquilo não é fazenda. Fazendeiro é o sujeito que ou planta ou cria, eu não faço nenhuma coisa nem outra. Eu ainda tinha um gadinho, herança de pai, e meu vizinho é meu sobrinho. Quando fui pra lá, tinha umas 30, 40 reses, entreguei pra ele, olha, taí, eu não tenho mais cabeça pra quebrar com esse povo de hoje, você me dá duas vacas pra eu comer leite, viu? Quando essas secam, eu entrego as duas e recebo outras”.

Amor

“Essa menina… É a mania de sertanejo de espiar o rastro, viu? Eu tinha um vaqueiro velho, Olímpio Inácio, foi o maior rastejador que eu conheci. E um dia, ele me disse, eu vi seu rastro lá na serra, eu andava muito a pé. Eu digo, que mentira é essa, nego véi, como é que você sabe que era meu? – Vamo pra beira do caminho. Ói, o rastro de fulano, beltrano, sicrano, essa daqui vai com um menino. Ele dizia, do povo dessa terra, tanto faz eu espiar a cara como o rastro. E eu passei a prestar atenção nisso. E escrevi umas besteiras sobre o rastro, essa moça escreveu um conto sobre o rastro e me mandou, pra eu dar uma espiada. E daí começou o desmantelo”.

1 Comments

  1. Falar sobre Osvaldo Lamartine de Farias, é muito difícil, só posso dizer que ele para mim é eterno assim como sua obra e sua simplicindade.
    sds.
    Aluísio Cavalcante.

    Curtir

Deixe um comentário