FOLCLORE E CULTURA POPULAR


Retirado de Comissão Maranhense de Folclore

FOLCLORE E CULTURA POPULAR
Sergio Ferretti

Folclore é um termo que em inúmeros ambientes provoca mal estar. Para os mais jovens é sinônimo de coisa ultrapassada, de velharia e é criticado por se prestar a paternalismos. Folclore e cultura popular possuem significados múltiplos e variados, constituindo conceitos complexos e confusos, não bem definidos.

Para Gramsci (1978) folclore é um aglomerado indigesto de fragmentos de todas as concepções que se sucederam na história. Ao mesmo tempo Gramsci considera o folclore como importante e diz que deve ser estudado e compreendido como concepção do mundo e da vida, em grande parte implícita, de determinados estratos da sociedade, em contraposição às concepções oficiais do mundo. Para Gramsci existe cultura popular na medida em que existe cultura dominante. Nesta perspectiva, segundo alguns, a cultura popular assumiria em face da cultura dominante uma posição diversa, contestadora de sua autoproclamada universalidade. A este respeito parece enriquecedora a hipótese de Bakhtin, destacada por Ginzburg (1987), de que existe uma influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a das classes dominantes, que funcionou especialmente durante a Idade Média e até a metade do século XVI.

Analisando relações entre a cultura dominante e a cultura popular, e o problema da circularidade entre ambas, o historiador Carlo Ginzburg (1987: 16/17) assume posição favorável ao conceito de cultura popular:

“A existência de desníveis culturais no interior das assim chamadas sociedades civilizadas é o pressuposto da disciplina que foi aos poucos se autodefinindo como folclore, antropologia social, história das tradições populares, etnologia européia. Todavia, o emprego do termo cultura para definir o conjunto de atitudes, crenças, códigos de comportamento próprios das classes subalternas num certo período histórico é relativamente tardio e foi emprestado da antropologia cultural. Só através do conceito de ‘cultura primitiva’ é que se chegou de fato a reconhecer que aqueles indivíduos outrora definidos de forma paternalista como ‘camadas inferiores dos povos civilizados’ possuíam cultura. A consciência pesada do colonialismo se uniu assim à consciência pesada da opressão de classe. Dessa maneira foi superada, pelos menos verbalmente, não só a concepção antiquada de folclore como mera coleção de curiosidades, mas também a posição de quem distinguia nas idéias, crenças, visões do mundo das classes subalternas nada mais do que um acúmulo desorgânico de fragmentos de idéias, crenças, visões do mundo elaborados pelas classes dominantes provavelmente vários séculos antes. A essa altura começa a discussão sobre a relação entre a cultura das classes subalternas e a das classes dominadas. Até que ponto a primeira está subordinada à segunda? Em que medida, ao contrário, exprime conteúdos ao menos em parte alternativos? É possível falar em circularidade entre os dois níveis de cultura?”

Gramsci destaca elementos positivos e negativos no folclore. Suas concepções encontram-se difundidas entre intelectuais que se interessam pela cultura popular. Deve-se ressaltar contudo, que para o povo, o folclore não se constitui um aglomerado indigesto, mas um todo integrado. A visão do portador do folclore é totalizante e difere da visão do intelectual, que, como Gramsci, considera o folclore uma “bricolagem”, um aglomerado indigesto de fragmentos de concepções diferentes (Ver Ferretti, S. 1990). Ginzburg, com vimos, critica a idéia de cultura popular em Gramsci, como acúmulo de fragmentos de idéias elaboradas pela classe dominante, preferindo a hipótese da circularidade entre cultura popular e erudita.

Para muitos, folclore eqüivale a cultura popular. Para outros, cultura popular eqüivale a cultura de massas e seria diferente do folclore. Com isso abre-se uma discussão interminável e considerada mesmo bizantina, que segundo Rita Segato de Carvalho (1992), começa a perder fôlego a partir dos anos 60 com mudanças ocorridas nas Ciências Sociais e devido a diversos fatores, uma vez que hoje dilui-se a preocupação com a elaboração de tipologias de culturas e de sociedades e também porque é difícil definir e diferenciar o que é e o que não é povo, como o que é e o que não é cultura popular.

A expressão cultura popular pode ser entendida como uma forma mais moderna de designar o folclore. A palavra folclore encontra-se desgastada e tem conotações pejorativas. A expressão cultura popular é também discutível. Alguns como Canclini (1983), propõem a expressão culturas do povo. O conceito de cultura popular, criticado sobretudo por cientistas sociais, vem sendo hoje largamente utilizado no âmbito da História. Isambert (1982) discute o renascimento do interesse pelo estudo de religião, cultura popular e festas, como temas interrelacionados e caracteriza múltiplas utilizações destes conceitos.

Segundo Ortiz (1980: 46), Gramsci inclui o folclore e a religião dos subordinados no conceito de cultura popular, como concepção do mundo e como forma de conhecimento que se contrapõe à cultura hegemônica. Convém lembrar que existem diferenças marcantes entre religião popular e folclore e que uma não deve ser limitada à outra (Isambert, 1982: 48). No tambor de mina a religião é encarada como “obrigação”, como algo que deve ser levado muito a sério e que impõe respeito. O folclore costuma ser visto pelo povo como mera distração, como “brincadeira”, como se diz no Maranhão. Acontece que para os participantes de manifestações folclóricas como o tambor de crioula e ou o bumba-meu-boi, a festa ou a “brincadeira”, chega a ser levada tão a sério pelos seus organizadores, que acaba se transformando praticamente numa obrigação religiosa. De qualquer forma o povo distingue religião e folclore e, nesta perspectiva, consideramos preconceituoso incluir religião popular no domínio do folclore. Apesar de imprecisões, parece-nos que o termo cultura popular é mais adequado do que folclore, principalmente quando relacionado com religião.

Em 1976, quando se fez na Bahia um movimento para desvincular os cultos afros da obrigação do pagamento de taxas na polícia para a realização de seus ritos, a Federação Bahiana de Cultos Afro-Brasileiros argumentava justamente que cultos religiosos não devem ser considerados atos folclóricos (Braga, 1995: 181-182). Este movimento, pioneiro no Brasil e que posteriormente foi seguido em outros Estados, contribuiu para que, embora tardiamente, as religiões afro-brasileiras passassem a ser incluídas na mesma categoria de outras religiões, aplicando-se também a elas, só então, o preceito constitucional de liberdade religiosa. Esta constitui mais uma razão para que incluamos religiões afro-brasileiras no campo da cultura popular (Líderes de movimentos negros preferem incluir religiões afro-brasileiras e outros elementos da cultura do negro no campo da cultura negra e não da cultura popular, com objetivo de reivindicar suas especificidades, reforçando o caráter negro de suas manifestações religiosas e culturais. A este respeito, Kabengele Munanga (1988: 143), citando Barth e Cardoso de Oliveira, lembra que “A interconexão entre grupo étnico e cultura é algo sujeito a tantas confusões que melhor seria toma-los separadamente para fins analíticos e de conformidade com a natureza dos problemas formulados para investigação”.), em vez de considerá-las como fazendo parte do folclore, como foi argumentado pelos que defenderam, na época, o caracter religioso e não folclórico do candomblé.

Como diz Renato Ortiz (1992: 61), a noção de cultura popular é relativamente recente, tendo surgido na Europa com o movimento romântico de inícios do século XIX, justamente quando aumentou a separação entre cultura de elite e cultura popular. Hoje constata-se a diversidade da cultura popular, que não constitui um todo homogêneo, como pensavam intelectuais românticos do século passado, que inventaram este conceito, no dizer de Peter Burke (1989).

Os estudos de folclore também são relativamente recentes, como é sabido, tendo a palavra sido criada na Inglaterra em meados do século XIX, sendo portanto par nós, palavra de origem estrangeira. Para alguns folcloristas o estudo do folclore constituiria uma disciplina científica autônoma. Cientistas sociais costumam incluí-lo no campo da Antropologia.

Satriani (1986) mostra que no estudo da cultura de qualquer sociedade é indispensável levar em consideração as distinções de classe. Considera o folclore como cultura das classes subalternas e diz que seu estudo constitui uma das formas de documentar os valores e a ideologia destas classes. Inspirados em Canclini (1983: 30), estamos interessado em estudar a cultura popular como “pratica simultaneamente econômica e simbólica”, como produção simbólica da classe subalterna, como elemento de reflexão sobre a realidade e a identidade social.

Em interessante trabalho recentemente divulgado no Brasil, Canclini (1997: 220) defende a idéia que “o popular não é monopólio dos setores populares”. De acordo com suas idéias constatamos que hoje não se pode mais procurar uma idade de ouro da cultura popular. Não podemos mais proceder como Malinowski que nos mostrava os Argonautas do Pacífico quase que independente das trasformações que eles sofriam. Da mesma forma referindo-se principalmente ao artesanato e a festas no contexto Latino-Americano, Canclini (1997: 220-221), mostra que:

“A evolução das festas tradicionais, da produção e venda de artesanato revela que essas não são mais tarefas exclusivas dos grupos étnicos, nem sequer de setores camponeses mais amplos, nem mesmo da oligarquia agrária; intervêm também em sua organização os ministérios de cultura e de comércio, as fundações privadas, as empresas de bebidas, as rádios e a televisão. Os fenômenos culturais folk ou tradicionais são hoje o produto multideterminado de agentes populares e hegemônicos, rurais e urbanos, locais, nacionais e transnacionais. Por extensão, é possível pensar que o popular é constituído por processos híbridos e complexos, usando como signos de identificação elementos procedentes de diversas classes e nações. Ao mesmo tempo, podemos tornar-nos mais receptivos frente aos ingredientes das chamadas culturas populares que são reprodução do hegemônico, ou que se tornam autodestrutivos para os setores populares, ou contrários a seus interesses: a corrupção, as atitudes resignadas ou ambivalentes em relação aos grupos hegemônicos.”

Michel Vovelle (1987), estudando atitudes coletivas diante da morte, da festa e da história religiosa, discute os conceitos correlatos de ideologia e mentalidade. Diz que na História o conceito de mentalidade surgiu nos anos 50/60, não é universalmente aceito, mas lhe parece mais adaptado às necessidades de pesquisa sem pressupostos e lhe parece mais amplo do que o conceito de ideologia. Para Vovelle (1987: 19), o conceito de mentalidade, “integra o que não está formulado, o que permanece aparentemente como ‘não significante’, o que se conserva muito encoberto ao nível das motivações inconscientes e … remete às formas de resistências”. Considera que a história das mentalidades desenvolvida nos últimos vinte ou trinta anos, ensina “a encarar mais diretamente o real, em toda a sua complexidade e em sua totalidade” (idem, 25). Vovelle discute também a abordagem pela história, da religião popular (157) e a redescoberta da festa (240).

Ginzburg (1987:31) afirma que a história da mentalidade ou psicologia coletiva possui conotação interclassista, preferindo o estudo da história da cultura. Inspirados nestes autores, consideramos que o estudo da cultura popular, da religiosidade e de festas populares pode nos ajudar a entender elementos da mentalidade vigente nas classes subalternas e a entender a construção da identidade social dos participantes destas manifestações.

Apesar de deficiências e indefinições cultura popular é um conceito mais dinâmico do que folclore. Atualmente muitos historiadores o utilizam na tentativa de resgate e análise de práticas populares.

Preferimos a expressão cultura popular no singular do que no plural como propõe Cancline (1983), numa perspectiva que pode ser preconceituosa. Concordamos com Arantes (1981) que o conceito de cultura popular não é bem definido pela Antropologia, é criticado e causa mal-estar a muitos. Como mostra Burke (1989), o interesse pela cultura popular surgiu em fins do século XVIII, influenciado pelo ideal romântico de pureza, se difundiu sobretudo em regiões periféricas e foi mais tarde apropriado por movimentos populistas. O próprio conceito de povo é também difícil de definir como muitos autores constatam. Os antropólogos preferem deixar esta tarefa aos politicólogos.

O conceito de identidade também têm sido objeto de inúmeras discussões na Antropologia (Levi-Strauss, 1981). Como mostra Cardoso de Oliveira (1976: 4), a identidade pessoal ou individual e a identidade social ou coletiva estão interrelacionadas como dimensões de um mesmo fenômeno. Os mecanismos de identificação refletem a identidade em processo, assumidas em situações concretas. Segundo Berger & Luckmam (1978: 228), “os processos sociais implicados na formação e conservação da identidade são determinados pela estrutura social”.

Brandão (1986) discute os conceitos de etnicidade e identidade étnica em torno da noção de pessoa, analisando transformações relacionadas às sociedades indígenas no Brasil. Cunha (1987), em vários trabalhos, tem discutido o conceito de identidade étnica em relação a traços culturais religiosos, econômicos e outros, constatando que em vez de pressuposto, a cultura é um produto de um grupo étnico(1987: 116) e que etnicidade pode ser entendida como forma de organização política (1987: 107).

Em trabalho anterior (Ferretti, 1995: 95-113), discutimos elementos do conceito de identidade étnica em relação ao negro, ao estudo das religiões afro-brasileiras e ao sincretismo religioso. Constatamos que em alguns grupos afro-brasileiros a religião, mesmo sincretizada com diferentes tradições, pode se constituir fator de preservação de identidade social.

Estamos interessados, como dissemos, em estudar, na perspectiva antropológica, elementos da cultura popular presentes nas festas religiosas como meio de documentar valores da cultura das classes subalternas e como elemento de reflexão sobre a identidade social dos grupos que as realizam.

BIBLIOGRAFIA

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4 Comments

  1. amei esse texto é uma coisa interesante para o nosso estudo e muito mais.
    gostei do jeito desse texto
    se esforce mais e ache em voces a felicidade das crianças
    náo só das crianças, mas dos adultos qwe nao sabem ler

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  2. Olá, gostaria de saber se você tem o link deste texto, por favor, não consigo achar ele no site da comissão maranhense de folclore. Me ajudaria muuuito.

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