Ivan Vilela – Um grande defensor da Cultura Brasileira


RETIREI a excelente entrevista abaixo do site Vozes da Música Instrumental

Uma cultura de soma! Está é uma das características que Ivan Vilela aponta sobre a cultura brasileira. A antropofagia é essencial para a manutenção da nossa cultura, mas para Ivan não estamos com tal postura atualmente e, por isso, estamos nos tornando cada vez mais americanizados. Isso é muito preocupante.

Além de um grande violeiro, Ivan é um grande pesquisador da cultura mineira (e consequentemente, brasileira). Como ele mesmo explica, até a gravação do seu CD Paisagens, os seus colegas músicos nem pensavam em utilizar a viola na música instrumental. Atualmente, a história é muito diferente.

A entrevista começou com a viola como assunto principal, mas depois virou sobre a cultura brasileira. Não é de se estranhar tal mudança, já que a viola é um elemento muito importante da nossa história.

Confiram os trechos da entrevista com o Ivan Vilela.

Mariana Sayad

Entrevista com Ivan Vilela

Por Mariana Sayad

Nome completo: Ivan Vilela Pinto
Data de Nascimento: 28 de agosto de 1962
Local de nascimento: Itajubá, MG
Local que reside atualmente: Ribeirão Preto

Vozes as Música Instrumental – Fale um pouco sobre sua formação musical.

Ivan Vilela – Em casa, eu sou o caçula de 11 filhos. Era uma casa mista. Eu tinha um irmão que fazia engenharia, mas o sonho era ter sido maestro, então só ouvia música erudita. Tinha uma irmã beatlemaníaca. E a maioria dos outros irmãos era muito ligado ao movimento da contracultura. Então, eles escutavam muita música brasileira, desde bossa nova, música de protesto até as músicas e protesto do resto do mundo, tipo Bob Dylan. Eu cresci ouvindo essas coisas. Alguns irmãos tocavam violão e com 11 anos eu ganhei um violão e a partir daí foi uma descoberta. Como eu não sabia tocar as músicas dos outros, comecei a compor coisas simples no violão. Com mais ou menos 17 anos passei a participar de festivais e foi a época que começou a despertar essa vontade de ser músico.

VMI – Fale um pouco sobre as suas principais influências.

IV – Difícil. Um resumo. Sempre gostei de escutar muitas coisas diferentes. Historicamente, me influenciou demais a primeira geração de choro. Eu ouvia muito. Villa-Lobos eu ouvia exaustivamente, principalmente a obra para violão. Eu tenho a impressão que pela via de Villa-Lobos, por afinidade musical veio toda a escola dele, como Edu Lobo, Gismonti, Dori Caymmi. Acabamos tendo ressonância com coisas que nos aproximamos. Não ouvia muito jazz. Eu ouvia muita coisa de música regional brasileira e depois do mundo todo quando começamos a ter mais acesso. Com uns 20 poucos anos comecei a trabalhar com pesquisa de música popular, que foi uma coisa que nunca mais larguei, que inclusive ficou muito presente na minha música. Eu ouvia muito rock, principalmente rock progressivo. E MPB de maneira geral. A MPB dos anos 60 e 70 maciçamente e acho que foi essa a principal base da minha formação musical. Até por conta de tocar na noite. Foi por aí.

VMI – Como começou a sua pesquisa sobre as raízes da música de sul mineira? O que mais chamou a sua atenção nestas pesquisas?

IV – Na época na Unicamp, eu fazia um curso de música erudita e para os colegas, eu era um músico popular. E para o pessoal da música popular, eu era um músico folclórico. Eles me tratavam como uma linha mais tradicional da MPB. Eu não era muito afim do pop dentro da MPB. Eu, particularmente, não gosto. Eu acho fraco. É interessante, mas não se tem nada muito consistente dentro do ponto de vista musical. E vários músicos já se perderam, por exemplo, o Djavan e o Milton. Pegaram um bonde errado ao se tornarem “pop star”. O próprio Caetano e o Gil. Pela seguinte razão, não se tem nada da produção atual deles, que tenha qualidade da produção anterior. A questão é mais pragmática mesmo.

Eu já gostava da música mineira e talvez o Clube da Esquina tenha sido a coisa que eu mais escutei na adolescência. Os meus irmãos compravam todos os discos e eu tocava tudo no violão. Em 1992, junto com um amigo da faculdade, comecei a ouvir em casa. E o Clube da Esquina tinha uma ressonância. Depois fiz a consultoria musical do Portal deles. O endereço é http://www.museuclubedaesquina.org.br . Eu fiz os textos, elaborei as entrevistas dos artistas todos. Foi uma coisa feita pelo Museu da Pessoa e pelo Márcio Borges… Então, fui mergulhando, principalmente por conta desse trabalho com o Museu e por causa do Clube. Por ficar ouvindo as músicas, eu fui ficando mais impressionando com coisas que eu ainda não tinha sacado.

O primeiro disco de Word Music atual, que temos, é do Clube da Esquina, que essa fusão de pop com tudo. De números musicais distintos tão bem cozinhados, que não se sabe o que é o que não é . Não reconhece onde está o congado, o jazz… Está tudo muito bem amarrado. Eles conseguiram fazer isso. Então, essa paixão foi aumentando. Eu acho que há uma injustiça musicológica no Brasil porque todos os livros vão só até a Tropicália. Eu ainda insisto e vou tentar provar musicologicamente, que as contribuições musicais que tivemos – que todas as coisas que eles fizeram, como o uso do violão como instrumento de percussão – viraram coisas de uso comum. Eu acho que a escola dos mineiros é muito grande. Eu conversei com o Ivan Lins e ele disse que foi altamente influenciado pelo Milton. O Gonzaguinha eu não preciso nem falar. Eu acho o João Bosco e o Djavan. E mais do que todos, eu acho o Gismonti muito influenciado pelo Milton. O Gismonti é um cara que eu gosto muito. Eu tive épocas de escutar demais. Eram basicamente três discos , que eu mais escutava: Dança das Cabeças, Nó Caipira e Sol do Meio-dia. Aquela onda dele, que eu gosto muito. É muito Milton Nascimento e ele gravou muito Milton também, como o Fé Cega, Cravo e Canela. Aquele tema de abertura de flauta do Dança das Cabeças, lembra um pouco Cravo e Canela.

Acho que da música mineira é isso. Para mim, é uma bandeira.

VMI – Qual foi a influência que o violão exerceu sobre a sua obra?

IV – Toda. Eu fui violonista a vida inteira. Foi o instrumento onde eu aprendi música, tanto a música lida, quanto da erudita. Tudo de harmonia que aprendi foi no violão. Eu não toco outro instrumento, como piano. Tudo que eu queria tirar, eu ia ao violão. Eu escutava muito, principalmente o violão brasileiro. As gerações anteriores, como o Garoto. Eu escutava muito. O violão era o meu instrumento. A viola apareceu na minha vida a partir de 95.

VMI – Como despertou seu interesse pela viola caipira?

IV – A viola foi por conta de um projeto. Eu tinha a viola e já tinha gravado num LP em 1985. Foi o meu primeiro disco, mas eu usei e larguei. Em 1992, comecei a compor uma Ópera Caipira por causa de um projeto , que surgiu na faculdade. Eu fiquei dois anos e meio compondo essa ópera. Isso me forçou a um mergulho na música caipira, que era uma coisa que eu tinha da infância, mas eu não escutava mais. Eu tinha uma ligação com a música folclórica, principalmente a mineira, que eu saia pra campo gravar. Mas a caipira não. Eu resolvi montar uma orquestra para essa ópera, que chamo que orquestra caipira. Ela mistura instrumentos, como flauta e clarineta com viola e acordeom. Mistura um monte de coisa. E eu tive que começar a tocar viola para escrever. Eu tinha passado por um processo, que foi muito decisivo pra mim, tive um cisto na mão por causa de tensão. Eu lembro que procurei violonista Everton Gloeden aqui de São Paulo e falei , que queria fazer uma carreira de aluno. Eu já tinha tido aula com ele, mas queria começar do zero. Ele topou e me ajudou a entender os movimentos. Tinha um livro de anatomia que também me ajudou. Eu consegui começar elaborar um raciocínio de como tocar do meu jeito e de maneira relaxada. Eu tive que largar mão de todo o repertório que eu tinha antes para apagar toda memória muscular. Tive que começar de novo. Nessa época, eu tive aulas com o Bellinati e depois fui fazer aula com o Ulisses da Unicamp, que foi um cara muito importante para mim. Não só pelo ensino de violão, mas pela maneira de pensar o instrumento. Ele é um cara impetuoso, forte e até rude às vezes. Isso para mim foi muito bom, pois eu era muito delicado. Ele foi muito legal para mim nesse sentido. Grande mestre.

Nesta época, eu comecei a tocar viola. E todos os entraves, que eu tinha no violão, eu não tinha na viola porque era um instrumento novo. Eu já sabia pensar como eu deveria pensar. Fui inventando um jeito meu e foi engraçado porque eu tinha toda a mecânica interiorizada e eu não tinha entrave técnico. Tudo que eu queria fazer, era só estudar um pouquinho, que eu conseguia. Inclusive, eu voltei agora a estudar violão com o aparato da viola. Eu estou vendo que está muito fácil tocar violão. Algumas coisas que eu não conseguia tocar, agora eu consigo. Eu consegui romper uma série de bloqueios da cabeça mesmo. A viola é um instrumento idiomático. Ela surgiu dentro de uma cultura no Brasil. Ela veio de Portugal, mas se desenvolveu aqui. Principalmente, na cultura caipira. Então , para tocá-la é preciso conhecer essa música. Ouvir, tirar e saber como eles fazem. Eu fiquei uns seis meses fazendo isso. Foi antes de compor a ópera. Para ter o que falar na ópera. Na época, eu fiquei espantado com o libreto. Tinha 33 áreas eu pensei se eu fosse compor no tapa, estaria me repetindo na quinta música. Eu precisava ter elementos. Foi aí que a viola entrou e não saiu mais.

VMI – Houve algum tipo de resistência inicial na inserção da viola em outros contextos musicais?

IV – Totalmente. Na Unicamp, até gravar o Paisagens, a relação com a viola era meio jocosa. O pessoal caçoava. Principalmente a moçada do jazz. O Paisagens é um disco interessante porque consegue fazer uma síntese de elementos de música erudita, regional e da música instrumental brasileira. Até alguns professores começaram a me tratar. Antes eles nem me tratavam. Era um desprezo. Está acabando isso agora. Até acho que a viola está vivendo um momento de revitalização muito grande e eu tenho tentado da maneira que posso colaborar para isso. Inclusive o disco que vou começar a gravar, é só de arranjos. Eu decidi separar. Depois vou fazer um só meu, mas esse próximo terá duas músicas dos Beatles, do Chico Buarque, a Nascente do Flávio Venturini, Mario de Andrade, Pereira da Viola. É um saladão. Eu fiz uma leitura dessas músicas na viola e mais uma técnica, que eu desenvolvi que estou chamando de Dez Cordas, que será até o nome do disco. É a utilização dos pares separadamente na mão direita para tentar aumentar um pouco a gama harmônica na viola, pois a tessitura dela é pequena – menor que a do violão. E não dá para tocar viola como o violão. Você precisa esquecer de um para tocar o outro. A própria afinação do violão facilita, que se construa muita coisa em bloco. A própria bossa nova é bloco. Na viola, isso fica horroroso. Então a re-harmoniazação precisa ser contrapontística e com pouca nota. Foi um exercício legal… Por exemplo, quando preciso tirar duas notas do acorde para soar, penso em quais notas que eu vou puxar do acorde para dar o efeito.

A viola tem tido mais aceitação agora, mas eu ainda acho que no meio da música instrumental ainda rola um preconceito pequeno, que está começando a ser quebrado, principalmente, pelos instrumentistas de viola que estão surgindo. Eles são bons e têm utilizado recursos de modernidade. Não sei do que eu chamaria, que acabam credenciando a música deles em relação às outras pessoas.

VMI – Como foi a criação do trio de câmara Trem de Corda? Quais as principais dificuldades em unir a música popular com a erudita?

IV – O Trem foi na época da minha separação do primeiro casamento. Eu era casado com uma cantora e até gravamos um disco juntos. Pelo próprio curso de composição, eu estava conhecendo e gostando cada vez mais de música instrumental. A afinidade foi muito grande. Como eu não era cantor e fiquei sem a minha voz, porque a minha cantora tinha ido embora. Na época, fiquei pensando, que poderia ter um trio sempre pensando nesse viés de ter uma formação erudita que tocasse música brasileira. Então, convidei duas colegas. Uma violoncelista e outra violinista. A primeira era uma fera, mas a violinista não deu conta. Ela tinha muita dificuldade. Nessa mesma época, o Gramani e eu estávamos dividindo uma casa. Ele já tinha falado que não agüentava mais aquela vida de maestro e me convidou para tocar . Em fim de tarde, eu pegava o violão e ele o bandolim para tocarmos choro. E ele sugeriu de tocarmos chorinhos em bares. E eu topei. Então, quando a Rosangela saiu do trio, que mal tinha se formado, eu convidei o Gramani a tocar com a gente. Ele não só veio tocar, como fez 80 ou 90% dos arranjos. Ou seja, ele imprimiu a cara do Trem de Corda, que era de tocar muito choro, mas utilizando principalmente contraponto de música barroca. Usávamos muito. Inclusive, estou voltando a estudar violão para gravar no Trem, pois nunca gravamos. Só no Trilhas, um disco do Gramani com os quatro grupos que ele tocava, mas na época ele quis gravar as minhas composições e eu queria gravar os choros, que eram a cara do Trem. Mas o Gramani sempre foi muito generoso, por isso, gravamos muita coisa minha, que não é muito a cara do Trem de Corda. Tocávamos muito. Era engraçado, pois era um grupo que agradava “Gregos e Goianos”. Então, esse foi o Trem de Corda. Todo mundo gostava. Velho ou jovem. Era muito interessante.

VMI – Ainda sobre o Trem de Corda, como eram exploradas as sonoridades do violino com o violoncelo e o violão?

IV – Então, o principal cantor era o violoncelo por excelência. Sempre o explorávamos mais. O Gramani só escrevia o violão quando ele queria um solo. Acho que teve só duas músicas, que ele escreveu inteiro, que foram a Lua Branca e Carinhoso. Ele queria daquele jeito. Normalmente, ele apenas cifrava. Normalmente, quando ele chegava com a música. E ele chegava com umas cinco músicas por semana. O Trem tinha umas quarenta ou cinqüenta músicas na ponta do dedo. Ele era muito rápido. Ele colocava para tocar. Eu ficava ouvindo eles tocarem para saber como eu ia fazer a harmonia. Era mais um suporte. E acabava por um lado sendo um elemento de diferenciação, então, quando entrava outro violonista, era outro som. Como era tudo cifrado, cada um abria o acorde como queria. Tinha muito contraponto, que é uma característica dele, que desenvolveu um trabalho de rítmica. Ele jogava isso muito Trem e coisas muito difíceis até. Eu estava de aluno. Ficava vendo os arranjos.

VMI – Como foi a sua participação no Anima?

IV – O Anima foi o seguinte, eu morava com Gramani e o grupo ensaiava lá. Era um grupo bissexto. Eles se encontravam para tocarem duas vezes por ano. Era só música medieval, no máximo renascença (nos primórdios). Ele me convidou para tocar lá e eu não aceitei, pois não sabia nada de música Medieval. E ele disse: “- Por isso mesmo. Você sabe um monte de coisas que não sabemos. Toca viola, você conhece música folclórica”. Ele anteviu que era a saída para o grupo ficar diferente. Então, foi muito legal porque ele foi me instigando.

O Zé (Gramani) nasceu em Itapira, que é de uma tradição de congado poderosíssima. Os congados de lá eram uma festa a parte. Então, ele cresceu nesse meio, mas partiu para a música erudita muito cedo. Acho que a nossa convivência o fez retomar o gosto pelo popular. Foi quando ele começou a tocar as rabecas. Iniciar a pesquisa dele e foi o que mais marcou a carreira dele. E no Anima aconteceu o seguinte: Eu ou ele que fazíamos as espinhas dorsais dos arranjos, que na maioria eram coletivos. Na realidade, os outros músicos eram mais eruditos, ou melhor, a formação da música erudita que nós temos, que é mais européia, não contempla o compositor e, sim, o interprete. Ela é especializada em formar grandes interpretes, mas não compositores, que é um eleito de Deus que vai estudar a parte. Inclusive isso é uma coisa que peguei na construção dessa metodologia brasileira, somos criativos por natureza, então estimulamos isso desse jeito. Eu ensino viola assim. O quarto lugar do Prêmio Syngenta deste ano, foi um cara que aprendeu a tocar viola desse jeito.

Eu fiquei sete anos no Anima. De 1992 a 1999. Depois que o Zé morreu ficou meio insustentável. Tinha uma briga de ego muito grande. Depois entrou o Paulo, mas não agüentou e saiu. Agora entrou o santo Matsuda. Ele é a reencarnação do Buda na Terra… É incrível. Ele não saiu, mas fez uma coisa sensacional. O grupo está fazendo psicodrama. Tinha uns problemas lá. Os violeiros entravam e saiam. Agora, está o grupo inteiro fazendo psicodrama para ver se resolve essas questões internas.

Acho que essa cara que o Anima tem hoje, fomos eu e o Zé que demos. Não estou chamando pra mim nada que não seja meu. Olhando o grupo, é o que acho. Esse víeis de leituras de World Music que eles fazem, foi a cara que demos ao grupo enquanto estávamos lá.

VMI – Como foi a concepção do CD Paisagens?

IV – O Paisagens foi o meu processo de descoberta da viola. Eu ficava tocando. Aí saía algo interessante. Uma coisa nova que eu descobria no instrumento. Como se fosse uma bola, que depois eu ia desfiando. Então, a maioria das músicas surgiram disso de uma idéia bruta, às vezes um motivo. Algo meio Beethoven. E assim foram as músicas, Armorial e outras várias, que saíram de uma idéia só. Eu tenho essa coisa, eu sou muito prolixo mesmo, até na música. Então, a música acaba tendo uma cara orquestral no sentido de ter muitas partes. A música Boi tem muitas partes, não só ABC. Inclusive, na época de faculdade, era uma coisa que me incomodava muito. A questão da forma. Eu não achava que tinha que ter forma. E ela que acaba definindo os estilos todos. Você pega o período clássico, tem a forma sonata, antes era a forma binária. Eu queria fugir dessas coisas. Eu achava que a forma era muito delimitadora dos estilos. Na época de faculdade, eu fazia brincadeiras de tentar compor sem ter forma. É um pouco a música Solidão. Ela tem só um refrão, que às vezes volta, mas ela vai embora. Paisagens foi a descoberta do instrumento. Fui compondo.

VMI – Uma impressão que tenho (e sei que o Mané Silveira também tem) é que o CD Paisagens tem uma história para contar (com começo, meio e fim). Isso realmente acontece?

IV – Acontece. É engraçado. Eu vou voltar ao Clube da Esquina. Eu li há uns dois anos atrás no livro do Márcio Borges, que quando eles foram fazer primeiro Clube da Esquina o Ronaldo Bastos falava : “temos que construir o disco de uma maneira que a segunda música seja uma exata decorrência da primeira e que as mudanças de tonalidade sejam planejadas. De modo que tenhamos um disco que faça um fio”. Eu fiquei sabendo disso agora há pouco tempo. Eu fiz o Paisagens eu pensei muito nisso. Primeiro, as músicas todas foram feitas dentro do mesmo estado de espírito. A maioria delas é de 1997, um ano antes disco sair. Então, já tinha isso, de ter esse espírito de uma época que eu estava vivendo. Tinha o espírito de ter o processo de descoberta do instrumento. E na hora de gravar, eu ia usar violoncelo, cheguei até a fazer um ensaio com o instrumento e gravei num cassete. Quando ouvi, não era nada daquilo. Eu fiquei achando que queria um atributo mais tímbrico. Eu sabia que se eu tivesse um violino teria muito mais recurso. Mas a Rabeca, que às vezes desafina, e tem o som raspado. Eu achava que aquilo combinava mais com a viola. A idéia do disco é essa. Ele tem um fio mesmo. Que legal que o Mané também acha isso. Que legal que vocês perceberam. Ele vendeu bastante. Foram 15 mil cópias com só três lojas vendendo. Isso é importante. Foi mais de mão-em-mão e show. Ele é sintético. Ele tem a coisa da música regional, estudei música erudita e tem a música popular com as harmonias. Acho que ele mistura.

VMI – Como é o trabalho com a Oficina de Viola Caipira de Campinas?

IV – Em 1997, eu tinha um grupo de alunos e montamos uma orquestra. Todos iniciantes, que surgiram dessa história de nós compormos nas aulas. Criou-se um núcleo, mas não foi muito adiante. Em 2001, o Toninho – prefeito de Campinas, que foi assassinado – mandou um recado para eu pensar em montar uma orquestra. O secretário de Cultura me chamou, que achava que uma orquestra de viola seria um instrumento de divulgação mais popular, pois a sinfônica estava com muitos problemas. Eu montei esse grupo, juntei muita gente antiga, que tinha sido aluno. Mas o Toninho morreu e a prefeitura abandonou o projeto.

A nossa idéia era montar uma oficina de construção de instrumentos para trabalhar com crianças, principalmente de favela. Porque a maioria desse pessoal, seguramente, não tinha nada a ver com música caipira, mas os pais e os avós sim… Então, a idéia não era nem tanto musical, mas estimular esses jovens a resgatar os valores dos pais. Acho que uma das vias que está fazendo a viola voltar é essa busca de valores antigos. Como não teve acordo com a prefeitura, resolvemos montar uma ONG para manter esses projetos. Tínhamos um esquema de dar aula de viola, mas agora tudo isso está indo a bancarrota porque não temos grana e ninguém para mexer com isso.

Na época, eu e a minha mulher montamos doze projetos. Tinha um que era pegar teatro para cidadania com crianças de 7 a 11. Elas elegiam um problema, que eles tinham e escreviam uma peça. Tudo com orientação, mas eles iriam fazer tudo. Para elaborar as próprias questões. Tinha um que era muito legal: a s crianças iam fazer a história da família. Depois juntava para fazer a história da rua e editava um livrinho. C omo não tínhamos quem fosse atrás , foi naufragando. E só ficou a orquestra, que foi ficando difícil, mas continua. Nós recebíamos inicialmente, mas depois não tínhamos mais grana e começamos a trabalhar de graça. Aí não aparecia show. Depois de gravarmos o disco, começou a aparecer mais show e deu para segurar. A orquestra tem uma coisa interessante, que é juntar pessoas de seguimentos sociais diferentes, faixa etária muito distinta, nível diferente de formação sócio-cultural e educação. Tínhamos o pós-doutorado na Europa e o semi-analfabeto. Conseguimos encontrar uma maneira de todo mundo conviver muito bem, pessoas que jamais conviveriam porque têm valores diferentes, mas tinham a música de viola em comum. E não era só a música, tinha gente que chegava lá todo agitado e começava a tocar viola e ia acalmando. A viola acaba sendo um ícone desse jeito de viver mais tranqüilo.

VMI – Como é o seu trabalho na SOSACI?

IV – Na verdade, eu ajudei a fundar a ANCS, que é Associação Nacional dos Criadores e Sacis. No começo era basicamente o Zé Oswaldo (José Oswaldo Guimarães), que é o presidente da ANCS; tinha os amigos de Botucatu e eu de Campinas. Conseguimos matéria no jornal, que se chamava criadores de Sacis, demos uma entrevista ao Fantástico. Eu falei com o Zé, que precisávamos de um objetivo político e não só falar que Saci existe e que é um primata, que tem um pêlo vermelho na cabeça e, que na realidade, tem uma perna só. Eu achava que aquilo era pouco. É legal despertar a curiosidade das pessoas, mas tinha que ir além . Uma atuação mais política mesmo, escrever livros para crianças, resgatar os mitos. Na verdade, o Saci é a ponta de uma enormidade de fantasmas que temos aí. Então, chegou uma hora que eu saí (da ANCS), que não dava mais. Eu e o Zé acabamos nos distanciando. O pessoal da SOSACI é amigo do meu irmão e eu sou do conselho de anciãos, que brincamos que são os fundadores, mas todos têm mais de 60 anos. Então, eles me chamaram para uma reunião em São Luiz do Paraitinga. Eu fui e falei que eu gostaria que fosse política. Não política partidári a e eles falaram , que também queriam isso. Todos foram presos políticos . É um pessoal muito interessante de jornalistas. O Jô Amado é diretor do Le Monde Diplomatique ; o Mouzar Benedito é um monumento da cultura brasileira. Ele era geógrafo do IBGE e trabalhou na fundação do Pasquim. É um pessoal que faz parte da história do jornalismo. Então, foi legal e as coisas aconteciam. É um pessoal que queria ver acontecendo.

Montamos um primeiro evento, que foi a festa da SOSACI. A briga tem que ser contra o imperialismo, mas uma questão mais ampla porque a dominação que temos agora maciça dos Estados Unidos, sempre teve, mas agora está mais forte – você liga o TV a cabo e é tudo canal americano, os caras só falam em inglês – acho que todas as culturas são bem-vindas, mas primeiro vem a nossa. Essa é a atitude de todos os países. Acho que auto-afirmação cultural é questão de segurança nacional. Na França, eles têm essa auto-afirmação, assim como na Alemanha, Japão… Todos têm, porque nós não podemos ter? A briga foi o Halloween, que é o está acontecendo e como ele está famoso, vamos pegar carona nele. Fizemos a festa do Halloween só se for com carne seca. Você chegou a ver a camiseta? Que é um saci com garfo e faca, a abóbora apavorada na mesa e escrito “Raloim só se for com carne seca”. Nós vemos que as brigas políticas são muito pesadas, então, resolvemos pegar pelo bom-humor, que onde vamos pegar as pessoas. Pelo lado lúdico. Então, todos os restaurantes em São Luiz do Paraitinga no dia do Halloween, serviram abóbora com carne seca por um real o prato. Todo mundo que foi para lá, achou o máximo. Tivemos gincanas. Fizemos várias brincadeiras criativas, como a corrida de bicicleta do Saci, então tiramos um pedal da bicicleta. Depois, tinham que achar alguma coisa que o Saci escondeu na praça e a criança que imitava melhor o assobio do Saci. E todos ganhavam prêmio e não só os que ganhavam. Até para ser uma coisa mais cooperativa, do que competitiva. Então, a SOSACI se firmou. Conseguimos aprovar um projeto de lei em São Luiz do Paraitinga, que o dia 31 de outubro é o Dia do Saci; depois na cidade de São Paulo, depois no Estado de São Paulo e a Aldo Rebelo está tentando um projeto de lei nacional.

Isso é muito importante de deixar claro, para tudo que eu faço, a cultura brasileira, é uma cultura de soma. Não podemos ser xenófobos de jeito nenhum. Porque uma atitude xenófoba é contra a cultura brasileira. Mas não podemos esquecer quem somos e acho que temos nos esquecido muito. Acho que o fato de termos brincado na rua, nos fez repetir brincadeiras que o avô do Pedro Álvares brincou, que os índios brincaram e as crianças não estão tendo isso hoje mais. Antes, tudo que engolíamos de fora, entrava e batia num caldeirão muito grande do imaginário popular e acho que as crianças não estão tendo mais isso, principalmente nas cidades grandes. Esse caldeirão está seco. Vou dar um exemplo, apesar de gostar, estudar e achar super autêntico, é o Hip Hop. Mas eu acho que se ele tivesse batido num caldeirão

mais brasileiro ele seria um Hip Hop mais brasileiro. Acho que ele tem a importância e a autenticidade dentro de uma cidade como São Paulo e é fundamental que ele exista. Mas os negros brasileiros estão se espelhando muito no negro americano, musicalmente, o próprio rap. E porque não no negro brasileiro? Que é tão bacana. O âmago é uma questão de auto-afirmação cultural, que é uma questão de segurança nacional. Enquanto não pensarmos que somos um povo muito bonito e com uma cultura muito rica, não vamos ter uma auto-estima elevada, que eu acho que é um problema sério do brasileiro. Eu acho que a partir do momento que se tem uma auto-estima elevada começa a querer cuidar da sua moral. Que é outro problema do brasileiro, que é um problema gravíssimo da sociedade em todos os âmbitos. Conversando com a Ecléa Bosi, a mulher do Alfredo Bosi, que trabalha com psicologia social na área de construção do mundo a partir da memória, e ela falou algo muito interessante: “não é sejamos nostálgicos, não queremos voltar a viver o tempo que existiu, só não queremos que aqueles valores se percam porque foram eles que construíram o povo brasileiro”. Eu trabalho muito nesse sentido nas minhas aulas de música na faculdade. Eu tenho umas conversas com os meus alunos nesse sentido. Não podemos deixar de ser brasileiros e estamos deixando.

VMI – O que você acha da nova geração de músicos?

IV – A música instrumental tem uma coisa legal, que também existe na música erudita: existe não por causa do mercado, ela existe porque ela existe. A música popular existe para vender e tocar na rádio. E está todo mundo está indo para esse caminho. E a música instrumental não. Eu acho que hoje, ouvindo várias músicas no mundo, a música brasileira é a melhor do mundo. E tenho argumentos para mostrar que é. É a mais diversa, sofisticada e mais um monte de coisas. E a música instrumental também. O que precisamos é começar a conquistar espaço fora do país. Eu estava falando com o Paulo Bellinati e ele falou que o jazz tem um circuito na Europa. Mas a música instrumental brasileira ninguém conhece. Eu acho a música brasileira e, em especial, a instrumental, maravilhosa. Acho que é essa a geração que está fazendo a música instrumental acontecer no Brasil. Antes tínhamos pontas, como Hermeto, o Gismonti, o Baden, Zimbo Trio, Quarteto Novo. Eu acho um máximo essa geração.

VMI – Para você, qual é o futuro da música instrumental no Brasil?

IV – Dominar o mundo. Dominar totalmente. Eu acho que música brasileira é o melhor artigo de exportação, que nós temos. E conhecendo outras músicas populares, que gosto e me interesso muito em estar ouvindo, a nossa realmente é incomparável. Acho que os Estados Unidos padecem dos mesmos problemas daqui, de controle da mídia, de tocar música ruim no rádio e na televisão, então, tem muita música boa lá que não escutamos aqui. Acabamos só escutando o jazz, mas eu acho que a nossa é mais diversa e o nosso caldeirão é maior. Temos 250 danças diferentes no Brasil. Uma vez, eu estava conversando com um pesquisador do Sul, que pesquisa o Xote Gaúcho. Ele catalogou 40 variações. E se colocar uma e outra, você vai achar que são duas coisas completamente diferentes, que são dois gêneros diferentes. Então, um gênero tem 40 variações. Acho que a tendência é dominar um mundo mesmo pela própria força da diversidade.

Ivan Muito obrigada!

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