Sobre a Heráldica Sertaneja I


Retirado de Verbo21

Rudes brasões – ferro e fogo das marcas avoengas, de Virgílio Maia. 2ª ed. SP: Ateliê editorial, 2004.
Por Alex Cojorian

Este é a segunda edição, mas com novo título, do então Álbum de iniciação à heráldica das marcas de ferrar gado, saído então em 1992 pela editora O Curumim Sem Nome, comandada diretamente de Fortaleza pelo próprio Maia. Virgílio Maia é também poeta e xilógrafo, autor de livros como Estandartes das Tribos de Israel e Timbre (Ateliê Editorial).

O maravilhoso volume apresenta um grande apanhado e uma iniciação à proposta de uma heráldica brasileira, a partir dos ferros de marcar gado. Partindo da Antigüidade, desde a efígie egípcia da ferra, igualmente cunhada em moedas ao longo do tempo, passando pela península ibérica e Américas até centrar-se no Brasil, e suas concentrações pecuárias mais notáveis, no Nordeste e no Sul do país. A introdução de Carlos Newton Júnior, docente da UFRN, resume a obra, seu histórico, suas intensões:

“Em 1970, no texto-manifesto que lançou oficialmente o Movimento Armorial, Ariano Suassuna chamava a atenção para a existência, no Brasil, de uma rica heráldica, presente desde os ferros de marcar bois do Sertão nordestino aos emblemas dos clubes de futebol das nossas cidades grandes, passando pelas bandeiras das Cavalhadas, pelos estandartes dos Maracatus, dos Caboclinhos ou das Escolas de Samba. A ligação com essa heráldica seria um dos pontos de partida para a realização de uma nova arte, erudita e de caráter brasileiro – a arte armorial.”

Pois, dando continuidade à idéia anterior do cearense Gustavo Barroso (As colunas do templo. RJ: Civilização Brasileira, 1932), que constatara uma heráldica forjada na lida diária do sertanejo, criada a partir das diferenças que os filhos acrescentavam aos ferros do pais, do apego a uma mesa familiar, em 1974, Suassuna lança o álbum Ferros do Cariri: uma heráldica sertaneja (Recife: Guariba), apresentado em uma caixa forrada com tecido, no qual os ferros encontram-se da capa ao miolo, das bordas às subdivisões do texto, e, a partir disso, e criou um alfabeto sertanejo:

Dez anos mais tarde o pesquisador Oswaldo Lamartine de Faria lança Ferro e ribeiras do Rio Grande do Norte (Mossoró, Coleção Mossoroense, 1984). Por suas próprias palavras:

“O ferro é uma beleza. Do lado direito da rês é o ferro do proprietário, que sobe da coxa pra pá, pela tauba do pescoço à testa. Do lado esquerdo era o ferro da ribeira, a bacia hidrográfica onde a sua fazenda estava assentada. Então, um boi seu, digamos que fosse aqui C, de cidade, saísse lá em Quixadá, digamos que fosse Q. Chegava lá, alguém olhava o ferro, não conheço essa marca, mas ribeira não é daqui, é da cidade. Chegando na cidade, o vaqueiro daqui olharia, dizia, eu não sei de quem é, mas o caixão da marca, quer dizer, o desenho básico, é da família tal. Mais fácil do que placa de automóvel, né? O criador autêntico, antigo, não tem letra. A letra já é do alfabetizado. Eles copiavam de um desenho rupestre, de um signo zodiacal, uma figura. Tinha aquele desenho do chefe da família, cada filho fazia a diferença num lugar. Aí vem a machonice, mulher não tinha direito de ter ferro. Ela recebia o ferro do pai com um número um, se fosse a mais velha, dois para a segunda e por aí vai, porque depois que ela casava, ficava com o ferro do marido. Se evita, na manufatura dos ferros, os ângulos, porque queima e vira uma ferida só. O animal bem ferrado tem que ser com o ferro bem quente e a mão não pode ser muito pesada nem muito leve. Depois passa um oleozinho queimado, descasca. Hoje em dia está tudo desaparecendo.”
(Em http://www.nordesteweb.com/not07/ne_not_20010718b.htm)

Em 1992 chega o livro de Virgílio Maia, anotando detalhes em pintura de Debret, chegadas de gado em São Vicente (a primeira em 1534), imagens de ferros gravados em portas e janelas das latadas das fazendas, pousos de gado, marcas de gado dos Guaicuru, os famosos índios cavaleiros, atuais Cadivéu, recolhidas pelo etnólogo Boggiani e por Darci Ribeiro, marcas de gado norte-americanas, argentinas, uruguaias, passes de gado, ex-libris, anúncios de jornais de reses perdidas, imagens rúnicas, marcas de corte de orelhas de animalhas, cartões de registro de marcas de gado, marcas de ferra em rosto humano como forma de punição, marcas de escravos, esculturas e arte do potiguar Audifax Rios, bandeiras mongólicas com marcas de gado, arte sobre porcelana, moedas de fazenda, e até história de Pato Donald.

Depois das ribeiras vieram as freguesias, delimitação jurídica e indicadora das localidades. E Virgílio Maia belamente reproduz e explica as marcas das 184 freguesias ou municípios. É o que há de mais principal neste livro.

Está aí: uma inteira estética brasileira, heráldica, armorial, tipográfica, cunhada e mais tarde destilada nas artes gráficas por gente como Fernando José da Rocha Cavalcanti. Aloísio Magalhães e Audifax Rios.

Lê, encanta-te, aprende, usa.

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